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Laudo do Tribunal Arbitral - Aclaração IV

Aclaração do Laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc do Mercosul que decidiu sobre a controvérsia entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina, identificada como “Aplicação de Medidas Antidumping contra a exportação de frangos inteiros provenientes do Brasil, Resolução N° 574/2000 do Ministério da Economia da República Argentina”


Aos 18 dias do mês de junho de 2001, o Tribunal Arbitral Ad Hoc do Mercosul que decidiu sobre a controvérsia entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina, identificada como “Aplicação de Medidas Antidumping contra a exportação de frangos inteiros provenientes do Brasil, Resolução N° 574/2000 do Ministério da Economia da República Argentina”, após proceder à análise da solicitação de aclaração do laudo ditado em 21 de maio de 2001, formulada pela República Federativa do Brasil, decidiu por unanimidade cumprir os trâmites de tal solicitação da seguinte maneira e na ordem dos pontos formulados:

I. De acordo com o assinalado no laudo, a singularidade da situação no Mercosul reside radica nos fatos de que, embora tenha sido estabelecido o princípio da livre circulação de bens (TA, artigo 4º 4; seu Anexo I, artigo 2º 2; e o Regime de Adequação Final), persistem obstáculos de diferente natureza que perturbam sua aplicação e que não existem instrumentos para aplicar medidas de defesa da concorrência (parágrafos 148, 141 e 153 do laudo). Nesse contexto, os EPM continuaram aplicando suas legislações antidumping ao comércio intrazona, justificadas como instrumentos para defender a concorrência, mas não como recurso para restringir o comércio. Nesta última hipótese cairiam sob o conceito de restrição ao comércio definido no artigo 2º 2 do Anexo I ao TA e estariam em colisão com o princípio de livre circulação (parágrafos 151 a 154 , 157 e 158 do laudo).

Nada disso justifica a existência de uma política nacional de antidumping que suponha a aplicação desse instrumento para obstar obstaculizar o comércio regional.

II. O petitório da Parte Reclamante solicitava que fosse declarado o descumprimento pela Parte Reclamada de diversos artigos do MN correlacionados aos correspondentes no Acordo AD OMC e, com esse fundamento em base a isso, requeria que se ordenasse à Reclamada a revogação da resolução questionada. Ao não estar vigente o MN nem ser aplicável o AD OMC como norma Mercosul, o Tribunal não acolheu o deu lugar ao pedido. Tampouco acolheu o petitório da Parte Reclamada quanto à solicitação para declarar que a normativa nacional argentina é plena e exclusivamente aplicável ao caso de autos, já que a aplicação de tal normativa não poderia colidir com o princípio de livre circulação de bens no Mercosul.

O Tribunal pode e deve apreciar se o procedimento configura tal restrição ou não. Trata-se de uma apreciação que corresponde não só ao antidumping mas que também diz respeito a qualquer ato dos EPM com efeito potencial ou real no comércio intrazona, ainda que o fato tivesse sustentação na respectiva normativa nacional. Assim os anteriores Tribunais Ad Hoc pronunciaram-se em matérias como o regime de licenças de importação e salvaguardas, e outros Tribunais poderiam emitir decisões sobre aspectos como medidas fitossanitárias ou de segurança. O que se verifica em tais casos é se os atos estão destinados a seu fim próprio ou são utilizados como um meio ilícito de restringir o comércio regional. Este é o critério orientador reitor para a decisão.

III. O desvio de poder refere-se precisamente a esse critério orientador reitor e leva a cotejar o ato concreto questionado com a normativa originária e derivada do Mercosul, a fim de apreciar se um determinado instrumento, neste caso as medidas antidumping, foi utilizado para violar de forma indireta ou dissimulada o princípio de livre circulação contido na normativa do Mercosul. O desvio de poder não substitui as fontes jurídicas do Mercosul, mas procura assegurar o respeito dessa normativa

Quanto ao mais, o desvio de poder é amplamente reconhecido inclusive na doutrina e jurisprudência anglo-saxônica (J.A.G. Griffith e H. Street, “Principles of Law”, Londres, Pithman & Sons, 1952, p. 214 ss) e não se circunscreve ao Direito Administrativo local, embora tenha tido desenvolvimento particular nesse âmbito, sendo que o fundamento do mesmo se encontra na Teoria Geral do Direito que reclama a adequação dos procedimentos e o exercício dos poderes jurídicos outorgados às finalidades das normas respectivas, e na ordem internacional se relaciona com o princípio de boa fé, universalmente aplicável e que, reconhecido pelo costume internacional, foi recolhido no artigo 26 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (“O Direito dos Tratados e a Convenção de Viena de 1969” de Ernesto de la Guardia e Marcelo Delpech, Editora Fedye, Buenos Aires, 1970, página 276 e notas 680 e 682). Por sua vez, o artigo 31.1. da mesma Convenção, ao reiterar a exigência da boa fé, a associa com o objeto e a finalidade. Em todo caso, a boa fé e o uso dos poderes jurídicos sem desvio e conforme sua finalidade são princípios gerais de direito que, como tais, constituem uma fonte autônoma segundo o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

De modo correlato correlativo, essa apreciação não deve ser caprichosa, mas requer estar baseada em fatores ou indicadores objetivos que demonstrem o desvio na intenção de quem cumpre a atividade sob análise. No caso, o Tribunal considerou elementos como os indicados nos parágrafos 183 a 200 que, ponderados de acordo com as regras da crítica sã (parágrafos 201 a 210), permitem chegar à conclusão de que não há elementos que tenham mostrado objetivamente o uso distorcido das medidas antidumping com a finalidade de restringir o comércio intrazona (parágrafos 212 a 215 e Conclusão 5).

IV. O exame do caso, ou seja do procedimento antidumping e das medidas antidumping, deve realizar-se à luz das normas que estabelecem a livre circulação de bens, a fim de verificar se o procedimento e as medidas constituem uma restrição proibida a essa livre circulação (parágrafo 132 e Conclusões 2 e 3).

Os procedimentos antidumping não são absolutamente regulados e contêm âmbitos importantes de discricionariedade, como pode ser visto, por exemplo, no AD OMC (2.2.1.1.; 2.3; 2.4; 3.2; 3.4; 3.5; 3.6; e 3.7). Por outro lado, nenhum ato administrativo é totalmente regulado, sempre há um espaço para a discricionariedade. Mesmo numa atividade altamente regulada, pode ocorrer o desvio de poder: “a finalidade, elemento essencial do ato administrativo, não só deve convergir com os atos discricionários, mas também com os regulados” (Miguel Marienhoff, “Tratado de Derecho Administrativo”, Abeledo Perrot, Buenos Aires, 1966, Tomo II, páginas 541 e 542).

A apreciação da ocorrência ou não desse desvio de poder não está impedida, pois, pela condição de ato regulado ou discricionário do procedimento sob análise. Afora o caráter relativo desses termos – em todos os atos jurídicos sempre haverá algo de regulamentação e algo de discricionariedade embora em medidas variáveis – o que se trata é estabelecer se o procedimento como tal, seja qual for seu grau de discrecionariedade e seja onde for que estiver estabelecido, foi usado com uma finalidade desviada para restringir o comércio regional.

Deduz-se daí que o Tribunal não tem a missão de verificar a concordância exata do procedimento com a legislação nacional argentina, mas a de examinar se este foi utilizado com uma finalidade diferente a que lhe é própria. É neste sentido que a referência doutrinária do parágrafo 166 do laudo sobre o cumprimento da lei tal como é, enfatiza e está ligada ao conceito de subordinação da administração ao princípio de finalidade da norma que aplica e não apenas à a sua exterioridade. O cumprimento escrupuloso de aspectos formais e ainda substanciais não garante por si só o ajuste do ato à finalidade da lei, nem que esta seja cumprida tal qual é. No caso de autos, o fim da norma aplicada é criar oposição a práticas desleais de comércio e seu desvio seria a utilização do procedimento estabelecido por essa norma como uma forma de restringir de maneira indevida o comércio regional regido pelo princípio da livre circulação de bens.

V. É sob esta mesma perspectiva que devem ser considerados os parágrafos 203 e 214 do laudo. As irregularidades graves no procedimento que privem uma parte de seu direito ao devido processo ou à aplicação no substancial de critérios evidentemente irracionais, podem permitir inferir, a partir de elementos objetivos, a utilização do procedimento com uma finalidade desviada para limitar o comércio. No caso de autos, o Tribunal não comprovou a existência desses elementos, como está consignado nos referidos parágrafos.

VI. O critério para o desvio de poder, no caso, é apreciar se o procedimento questionado foi utilizado para violar o princípio de livre circulação de bens estabelecido na normativa do Mercosul. Esse é, pois, o interesse a preservar, tanto no caso de autos como em todos os demais em que os EPM continuam aplicando procedimentos andidumping pelas razões expostas nos parágrafos 151 a 154.

VII. O Tribunal tampouco verificou uma intenção da Parte Reclamada de utilizar de modo distorcido o procedimento antidumping, daí seu pronunciamento ao respeito no laudo. A ausência de normativa Mercosul específica e vigente que estabeleça uma disciplina concreta para o dumping, ou um regime de medidas de defesa comercial, impede a realização de um exame detalhado de cada elemento do procedimento questionado, o que por sua vez determina o ônus na prova para configurar desvio de poder na aplicação do procedimento.